03 março, 2015

5 mitos sobre a origem das Escrituras; saiba mais

Imagem: shutterstockEm artigo publicado no site da ‘Folha de São Paulo’ nesta quinta-feira (26), o jornalista Reinaldo José Lopes, em sua coluna ‘Darwin e Deus’, cita os cinco grandes mitos sobre a maneira como a Bíblia foi escrita, editada e transformada num cânone.
Seguem abaixo algumas considerações do autor.
Mito 1: a Bíblia que temos hoje foi “inventada” no Concílio de Niceia
Nananinão, dileto leitor. O Primeiro Concílio de Niceia, realizado no ano 325 d.C. na cidade romana de mesmo nome (localizada na atual Turquia), foi uma grande reunião de bispos (cerca de 300) convocada pelo imperador Constantino. Seu principal tema foi a cristologia, ou seja, debates sobre a exata natureza de Jesus Cristo e sua relação com Deus Pai. O concílio deu o passo decisivo para definir que Jesus compartilhava da mesma natureza de Deus e existia desde o princípio dos tempos, não tendo sido “criado” em qualquer sentido ordinário. A agenda do concílio incluía várias questões menores, como a data correta da celebração da Páscoa cristã. Mas em NENHUM momento incluiu discussões sobre os livros que deveriam ou não ser incluídos na Bíblia. Repito: esse tema simplesmente NÃO foi debatido em Niceia.
Mas, se é mito, quando o cânone foi fixado, afinal? Bem, depende. De maneira geral, pode-se dizer que, no fim do século 4º d.C., uns 50 anos depois de Niceia, a maioria das igrejas cristãs aceitava mais ou menos os textos ainda aceitos hoje. Mas alguma variação continuou ocorrendo, e nenhum grande pronunciamento oficial e definitivo aconteceu ao longo do milênio seguinte. No Ocidente, foi só no século 16 que católicos e protestantes cristalizaram seus cânones ligeiramente diferentes, com alguns livros a mais ou a menos no Antigo Testamento, como veremos a seguir.
Mito 2: ao longo dos séculos, a Bíblia foi constantemente manipulada e alterada. Não fazemos a menor ideia de quais eram os textos originais
Para entender esse mito, vamos examinar a questão, pensando primeiro no cânone judaico (o Antigo Testamento) e depois no cânone cristão.
Primeiro, o fato é que a tradição de manuscritos do Antigo Testamento é muito antiga e bastante bem documentada. Os famosos Manuscritos do Mar Morto, achados na Cisjordânia nos anos 1940 e 1950, remontam até o século 2º a.C., em alguns casos, e vão até o século 1º da Era Cristã, ou seja, têm cerca de 2.000 anos de idade. A maior parte desses manuscritos corresponde a trechos de quase todos os livros da Bíblia hebraica, ou Tanakh, como também é conhecida — só não há na coleção trechos do livro de Ester.
Tem variação quando comparamos os textos bíblicos dos Manuscritos do Mar Morto com os textos hebraicos preservados pela comunidade judaica, os chamados textos massoréticos, que datam do século 9º d.C.? Tem variação sim, e considerável – trechinhos a mais ou a menos, trocas de letras, confusões de significado etc. Isso é especialmente verdade em textos de natureza poética, que possuem vocabulário mais complexo e de difícil interpretação. Mas há relativamente pouca coisa que tenha algum significado teológico ou histórico muito importante nessa variação. Algumas versões dos Salmos dos Manuscritos do Mar Morto, por exemplo, parecem dar a entender a existência de outros deuses além do Deus bíblico, Yahweh (nome geralmente traduzido como “o Senhor”). Mas essa inferência também pode ser feita com base nos manuscritos mais conhecidos da Bíblia, por exemplo. Não é nada propriamente bombástico.
Mito 3: os Manuscritos do Mar Morto contêm evangelhos apócrifos que revelam verdades chocantes sobre Jesus
Esse mito é fácil de derrubar, em contraposição ao anterior. Não há NENHUM texto cristão em meio a esses manuscritos, gente. A única relevância deles para o estudo do Jesus histórico é o fato de que eles nos ajudam a entender como era o judaísmo na época em que Cristo viveu. Fora isso, nada.
Mito 4: os evangelhos apócrifos são uma fonte mais confiável sobre a figura histórica de Jesus do que os que foram incluídos na Bíblia
Outro mito que vai ao chão com relativa facilidade. Hoje, quase todos os historiadores concordam que é preciso ler com muito cuidado os Evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — se a ideia é buscar informações historicamente confiáveis, porque o interesse dos evangelistas era fazer teologia, e não história no sentido moderno. Mas, e esse é um grande mas, a maioria dos historiadores também concorda que, se esses textos têm problemas do ponto de vista histórico, os evangelhos apócrifos, ou seja, não incluídos na Bíblia, são ainda mais problemáticos, em geral.
Isso porque tais textos foram, em geral, escritos bem depois dos Evangelhos canônicos e estão cheios de material lendário e especulações teológicas ainda mais ousadas do que os textos presentes na Bíblia. São quase “fan-fic” — aqueles textos escritos por fãs de um livro ou de um filme usando personagens criados por outra pessoa em suas próprias histórias.
Há uma possível exceção importante nesse caso, porém. Trata-se do Evangelho de Tomé, encontrado no Egito e feito quase que só de frases impactantes de Jesus, ou de parábolas contadas por ele. Alguns estudiosos importantes acreditam que Tomé preserva algumas versões das falas de Jesus que se aproximam mais do que ele teria realmente falado em vida. Mas muita gente discorda deles.
Mito 5: as Bíblias católicas e ortodoxas incluem textos apócrifos que não fazem parte do cânone “correto” do Antigo Testamento 
Esse é outro mito com nuances, como o mito 2. De fato, o que a Bíblia das igrejas protestantes inclui em seu Antigo Testamento é um conjunto de livros exclusivamente traduzidos do hebraico para as línguas modernas. São os mesmos livros incluídos pelos judeus atuais em seu Tanakh desde mais ou menos o ano 100 d.C. As Bíblias católicas e ortodoxas incluem ainda outros livros, como Judite, Sabedoria e Eclesiástico, que foram traduzidos do grego e a respeito dos quais se acreditava que tinham sido escritos originalmente em grego e/ou nunca teriam feito parte do cânone de qualquer grupo judaico.
Acontece, porém, que na época de Jesus o cânone judaico ainda estava “semiaberto”, e ao menos alguns grupos de judeus parecem, sim, ter considerado que tais livros eram canônicos. Trechos do Eclesiástico, por exemplo, foram achados entre os Manuscritos do Mar Morto, e em hebraico. A mesma coisa vale para o livro de Tobias – trechos em hebraico e aramaico também constam da “coleção” do mar Morto.
Isso significa que esses livros “devem” fazer parte do cânone? Depende. É claro que, no fundo, essa é uma discussão cultural e teológica. Mas o que claramente não funciona muito é dizer que o judaísmo nunca aceitou esses livros como parte das Escrituras — em alguns casos, essa informação parece não proceder.

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